Ainda agora acordei e já me estou a lamentar… Bolas, não me deveria ter deitado tão tarde, hoje juro que me vou deitar cedo… Ahahah… Claro que não, já sei que isso não vai acontecer! Vá, bora lá mas é sentar-me. Ups, e não é que o meu sonho até parece real: há mais de dez anos que nem um dedo dos pés mexo e acordo com uma das pernas fora da cama… E é isto, têm vida própria, é quando lhes apetece… Realmente sonhei que corria e saltava! Transfiro-me para a cadeira de rodas e arranco para a casa de banho na expectativa de resolver a questão do banho e afins. Toca o telefone. Atendo e oiço «Já estás atrasado!». Irritado, respondo «30 minutos e estou aí» (impossível, mas enfim). Caramba, há coisas que me irritam mesmo! É que nada é rápido, tudo leva o dobro ou o triplo do tempo a ser feito… Já tenho saudades da época em que podia dizer «Cinco minutos e estou pronto!». Saio de casa com a sensação de me ter esquecido de alguma coisa. Entro no elevador, páro noutro andar antes de chegar ao meu e a pessoa que vejo à minha frente olha para dentro do elevador e diz que vai no próximo pois este já está cheio – que eu saiba só ocupo 7% do espaço, mas OK, vá-se lá entender o porquê destes comentários… Entro no carro, desmonto a cadeira e aparece o meu vizinho que sempre que me vê insiste em ajudar-me mesmo depois de eu já ter repetido ene vezes que não preciso de ajuda. Acha logo que não quero porque sou orgulhoso. Nem sequer pára para pensar que se calhar não preciso mesmo, ainda sou autónomo! Sigo caminho, estaciono perto de um café, volto a montar a cadeira para me transferir e ao sair do carro reparo que tenho um casal a olhar para mim com cara de assustado (acho que as pessoas nem se apercebem de que até dá para lhes ler o pensamento: «Coitado, tão novo e já está numa cadeira de rodas, de certeza que foi num acidente de mota a alta velocidade). Atravesso a rua e deparo-me com um carro parado em cima da rampa de acesso ao passeio, tento arranjar solução para subir o passeio sem cair, pareço mais deficiente do que realmente sou. Lá chego ao café, e nisto o melhor afinal ainda estava para vir. Não é que toda a gente começa a agir como se eu merecesse uma medalha por ter ido ao café! Olha, e pensando bem até mereço mesmo, só a rampa de acesso, caramba, dá direito ao ouro! Entro no café e pareço o presidente da república : é tudo a abrir caminho para eu passar. Chego ao balcão, com mais de 1,80m de altura, atrás do qual uma senhora que está a atender acha que vou pedir pastilhas ou até mesmo um chupa-chupa. Começo logo a ficar enervado de estar a uma altura tão ingrata por causa da cadeira de rodas. Em lugares cheios, normalmente acabo por ficar a olhar para onde não devia ou não queria! Já pensaram no quão desagradável é ficar à altura de um rabo? Se se for um bom rabo até não é mau! Ahahah… A senhora do café debruça-se sobre o balcão e começa a falar comigo, bem devagar, como se eu fosse in-ca-paz de per-ce-ber o que ela es-ta-va a di-zer… Faço o pedido, dois cafés, e nem me preocupo com as cadeiras disponíveis, já tenho a minha (uma vantagem, estão a ver!?), só tenho de arranjar uma mesa. A senhora traz os cafés, deixa-os na mesa e começa a falar com quem está ao meu lado em vez de falar diretamente comigo. Alguém pode me explicar porquê??? Hora de pagar. Prioridade em algumas filas. Juro que não me incomoda nada passar à frente de 10 pessoas para pagar dois cafés, sabendo que nem vou ser eu que vou pagar, basta inclinar a cabeça e balançá-la.
Enfim… sigo para o trabalho e uma vez mais lá vou eu a pensar naquela rampa espetacular que terei de ultrapassar… aparentemente nada de mais, não é? Ora digam lá? É só uma inclinação de 20%, e não é que está mesmo à entrada da empresa! O relógio marca a hora de almoço, o patrão decide pagar-mo. Enquanto pensa no restaurante eu apenas imagino rampas, inúmeras rampas que terei de vencer, incluindo as de acesso à casa de banho, adaptada, dizem, mas é que na realidade usada como arrumos… Ah pois, o restaurante, é verdade, acabamos sempre no shopping mais perto, estaciono o carro, monto a cadeira sigo para o elevador – carrego no piso – 0 e não é que até a gravação da senhora do elevador dá o ar da sua graça: “Andar 0»! A porta abre e sigo caminho, sim, porque posso mover-me sozinho na minha cadeira, mas dou por mim com o patrão a empurrar-me e penso novamente na questão da cadeira enquanto brinquedo, para os outros, claro! Os outros elementos da equipa juntam-se a nós e até dá vontade de rir (Ahaha)… Really!? Mais uma vez a usar a minha cadeira como um cabide, outra vez!? São malas, casacos, chapéus de chuva e já nem vejo é a cadeira… Atrasámo-nos. Regressamos ao trabalho e o meu pensamento é mesmo: DESMONTA CADEIRA – MONTA CADEIRA- RAMPA DE 20%, tudo isto debaixo da tempestade HUGO!
Final do dia. Saio do trabalho, ligo o carro (AVISO – 20 kms de combustível). Sigo para uma bomba. Chego e dou o apito do costume, não se exaltem, é só um lembrete: mostro o dístico à senhora do posto para que ela me ajude a abastecer. Entretanto, lá aparecem os mirones: em menos de nada tenho 8 pessoas a olhar para mim… Ahaha fazem me lembrar uma família de suricatas! Ainda me vou rindo, é o que vale!
Hora do ginásio. Começo o treino e é instantâneo, tipo pudim, estão a ver? «com esse empenho e atitude tenho a certeza que vais voltar a andar», exclama o desconhecido. penso para comigo que se assim fosse já andava há algum tempo. E insiste uma vez mais: «Estou a dizer-te isto pois já parti uma perna e tive de andar de cadeira de rodas, sei bem o que isso é, por isso muita força, e acredita, és uma inspiração! – exclama do desconhecido. Eu que só estou a fazer o meu treino, tal como todos os outros que ali estão nem quero acreditar… Ah, pois, olho para baixo e cai-me a ficha: estou numa cadeira de rodas, daí ser uma inspiração, uma fonte de motivação para os outros. Será que me diriam o mesmo caso estivesse de pé e com a mesma determinação e atitude? Termino o meu treino e sigo para casa a pensar no jantar. Um Jantar romântico, num restaurante perto de minha casa – tento que seja romântico até chegar o empregado de mesa que me passa a mão pela cabeça e diz: – Vai papar não é? AIIIIIIIIII, sim, estou mais baixo mas daí a tratarem-me como se fosse uma criança é que NÃO! Por favor, NÃOOOO!
Sigo para casa dou três cambalhotas e pufff adormeço….
Acordei… E lá (re)começa a dança da cadeira… Não tem mal, é só mais um dia!